A minha infância foi dura. O morro não foi feito pra perna, e muito menos pra roda. A minha cadeira se limitava ao deslocamento do meu quarto para a laje, e da laje para o quarto. Qualquer outra coisa que quisesse fazer, mesmo ir à cozinha, tinha de ser carregado. Passei a viver pra dentro.
Minha família tinha seis pessoas. Três irmãs, mãe e pai. Eu era o menor. Quando fiz nove anos, minhas irmãs já tinham tamanho pra lavar louça e fazer faxina, mas meu pai sempre dizia: “Nem mulher minha e nem filha minha vai trabalhar enquanto eu estiver vivo. Assim era na Paraíba, assim será aqui!”. Essas afirmações me matavam. Como poderia trabalhar na obra com papai para ajudar a família? À noite, meus olhos infantis enchiam-se de lágrimas.
Certa feita, meu pai me encontrou chorando na cama. Com uma expressão muito severa, falou, segurando meus ombros: “Por que ta chorando? Já disse que você não é homem. Você é passarinho”. Assustado, engoli o choro.
Eu via o mundo do morro. As pipas que cortavam o céu, que se cortavam de dia. Os faróis amarelos e vermelhos na Avenida Brasil à noite. Vivia olhando e ouvindo, mas pouco falava, pouco sorria.
Eu descia o morro amarrado nas costas da minha mãe para ir à escola. Mas subia com minha irmã. Na tentativa de me entreter, minha irmã passou a deixar-me no campinho depois da escola, para assistir aos meninos jogando bola. Era fabulosa a forma como corriam e driblavam.
Os meninos me colocaram como mascote. Deram até meu nome ao time. Toda vez que faziam gol, corriam gritando em minha direção: “É Sabiá, é Sabiá!”. Jogavam-me pra cima. Eu dava gargalhada e os incentivava. Mas, por dentro, lá dentro, odiava vê-los.
Na noite da final do campeonato, depois de toda a festa da vitória, fui para a laje espiar o mundo e chorei um choro amargo. Meu pai me viu. Olhou-me por alguns segundos e saiu sem dizer palavra.
No outro dia, ele é quem foi me buscar na escola. Amarrou-me e começou a subir o morro. Adorava ser carregado por ele. Sentir seu cheiro forte, suas mãos sujas de massa, sua barba que me arranhava o rosto, seu pescoço negro. Nada no mundo me atingiria. Ele não falava nada, não precisava.
Quando chegamos, ele me pôs na cadeira de rodas e disse: “Filho, passarinho de três asas é cata-vento”. Passou a mão em meus cabelos e se foi. Fui até a laje olhar o mundo e lá estava, na muretinha, um cata-vento vermelho e branco. Fiquei soprando e pensando como seria um passarinho de três asas.
Para a minha surpresa, meu pai começou a sair mais cedo do trabalho toda terça-feira para me carregar para casa. Às vezes, sequer ouvia sua voz, mas sentia amor em seus olhos. Quando falava, eram poucas palavras, mas se completavam. Era como se quisesse me ensinar uma coisa que poderia ser dita de uma só vez, mas preferia me explicar aos poucos.
Certo dia, paramos num matagal onde tinha um pé de caju e um ninho. Papai subiu comigo e me mostrou os filhotes pelados. “Olha, filho, passarinho de três asas demora, mas voa”. Hoje sei que não, mas na época jurava ter visto um passarinho de três asas naquele ninho.
Na manhã de natal, ainda com os mesmos nove anos de idade, saí para ver as pipas e não acreditei no que tinha na minha frente. Havia uma bola grande e laranja no meio da laje e uma cesta pendurada. Peguei a bola que tinha cheiro forte de borracha. Olhei para a cesta. Não lancei. Voltei para o quarto e me deitei. Papai me viu e retirou-se.
Durante uma semana inteira meu pai não falou comigo e eu não peguei a bola. Olhava para a cesta, para as pipas e soprava meu cata-vento. À noite, um barulho forte me acordou. Papai estava jogando basquete na laje. Saí e fiquei olhando. Ele não tinha jeito nenhum com a bola. Depois de algumas tentativas ele me disse: “Filho, passarinho de três asas quando anda é desengonçado, mas quando voa, filho, quando voa é furacão!”. Jogou-me a bola. Eu tremia de medo, mas os olhos de papai não me deixavam recuar. Lancei e errei. Mal tinha forças para acertar na cesta. Ele buscou a bola novamente. “Sabiá, voa do jeito da tua natureza! Se não sabe bater asa, que dê pirueta!”. Deixou-me com a cesta.
Passei as férias jogando basquete dia e noite. Papai aumentou o muro ao lado da laje para a bola não cair lá embaixo. Com o tempo fui melhorando e quando chegou o dia de voltar para a escola, já estava craque. Foi meu pai, e não minha mãe, quem me carregou para a escola no primeiro dia daquele ano.
Senti estranheza quando meu pai tomou um caminho diferente. Andou pela cidade um bom pedaço de chão. Chegamos numa outra escola, bem bonita. Era um lugar para pessoas especiais. Depois de conversar com algumas pessoas num balcão, meu pai foi entrando por uns corredores e parou de frente para uma porta dupla, muito larga. Abriu a porta. Era uma quadra linda e brilhosa cheia de meninos cadeirantes como eu, jogando basquete. “Agora eu sei que você consegue, Sabiá. voa!”. Foi assim que meu pai me empurrou do galho.
Por Felipe Reina: http://www.menestrelidade.blogspot.com/
4 comentários:
nossa, um dos textos mais liiindos e singelos qe já li. MUITO, MUITO bom mesmo!
muito bonito o texto, li do começo ao fim sem piscar um segundo.
O Poeta de Plutão
............eita! depois q percebi que era o reina por aqui!!!!!!!!..........esse reina!!!!
Gente do céu!
Ameii!
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