.a prosa do dia é de cada um

O dia se aliou a noite, pra que não houvesse meio tom.


Pra longe de mim

O valor das passagens devia ser mais barato, pois todo dia precisamos fugir pra longe de nosso eu. Não que eu precise de distância, mas preciso de tempo pra entender que um segundo é uma lágrima e uma hora é uma dor. Ah, se as dores fossem profundas a ponto de deixarem cicatrizes pra gente nunca esquecer; todavia nós continuamos insistindo que somos de ferro e que as paredes nunca são de vidro. Pensei nisso, senti frio e olhei para o chão: as bolinhas de papel se agasalham nelas mesmas sem precisar de alguém. Se eu tivesse cicatrizes poderia sobreviver sozinho e não compartilhar o choro com nenhum sorriso.


Pra se sonhar A chuva que desaba à noite é a canção de ninar que toca enquanto balança a nossa casa, pra pegarmos num sono e roncar trovoadas; enquanto lá fora o mundo tem pesadelos, fatiga no colo do chão, e não acorda no dia seguinte com o carinho do sol.


Do murinho

Era o muro que abraçava a casa e fazia do quintal o seu mundo azul. Pro lado de fora virava as costas atijoladas e girava pra sentir apenas a sensação de amar seu próprio eu - transfigurado numa casinha de um andar só. Tinha em seu colo um ninho; pra que nele fosse feliz, sorria para cada assobio, com ou sem minhocas no bico. Namorava a folhagem de roseira, que alcançava seu topo sustentando a flor. Sua canção de ninar era o prazer de servir de apoio para o mundo inteiro. Sua função era domar o medo de cada criança, e seu medo era dos prédios com elevador.

Lucas Mesquita